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Sexta-feira ,26 Abril, 2024
Artigos de Opinião

Fraqueza de Deus

Boa parte do ateísmo contemporâneo baseia-se na objecção enunciada com muita força no passado por J. E Sartre e retomada pelos seus discípulos: “Se Deus existe, eu não sou nada”. Se existe um Deus omnipotente, o que ainda sobra para mim? Essa presença ao meu lado do poder absoluto torna irrisórias todas as minhas acções. Diante do infinito, todo o finito torna-se irrelevante. Há muitas maneiras de enunciar o argumento.

A objecção foi formulada desde a Idade Média, mas não conseguiu convencer. A resposta diz que Deus e o homem não se situam no mesmo plano, como duas liberdades em competição.

A resposta não convenceu porque durante séculos os teólogos debateram a questão da predestinação, isto é, da compatibilidade entre a liberdade de Deus todo-poderoso e a liberdade humana. Assim fazendo, situaram no mesmo plano as duas liberdades. Se os teólogos — tomistas, dominicanos e jesuítas — tomaram essa posição durante séculos, não é estranho que filósofos façam a mesma coisa.

De qualquer maneira, a pessoa sente tantas vezes o conflito entre a sua vontade, o seu desejo e o que se diz que é a vontade de Deus, que a reacção parece inevitável. Os sartreanos sustentam que, para ser livre, é necessário negar a existência de Deus. Infelizmente para eles, Deus não depende das negações ou das afirmações de Sartre.

A verdadeira resposta está na fraqueza de Deus. O nosso Deus é um Deus “escondido” — tema constante da tradição espiritual cristã. É um Deus que se manifesta no meio da nuvem, que se faz perceptível, mas não impõe a sua presença.

A liberdade consiste justamente nisto: diante do outro, a pessoa pára, reconhece e aceita que exista. Abre espaço, acolhe. Longe de dominar, escuta e permite que o outro fale primeiro. Assim Deus suspende todo o seu poder, quando a criatura aparece. A pessoa suspende o poder de Deus. Nenhuma evidência, nenhuma ameaça, nenhum constrangimento força nem obriga. Deus permite e deixa fazer. Deus respeita o outro na sua alteridade e permite, até mesmo, que o outro se destrua sem intervir. A liberdade de Deus consiste em permitir e ajudar a liberdade do menor dos seres humanos. A liberdade de Deus reprime o poder. Torna-se fraca para que possa manifestar-se a força humana.

O hino de Fl 2,641, núcleo da cristologia paulina, expressa essa fraqueza de Deus. Pois o aniquilamento de Jesus incluía o aniquilamento do Pai: “Esvaziou-se a si mesmo e assumiu a condição de escravo, tomando a semelhança humana. E, achado em figura de homem, humilhou-se e foi obediente até a morte, e morte de cruz!” (Fl 2,7-8). Deus escondeu o seu poder até a ponto de as autoridades de Israel não o reconhecerem. É desta maneira que Deus se dirige às pessoas: sem intimidação, sem poder, na dependência de seres humanos, entregando a própria vida nas mãos de criminosos. Quem dirá que dessa maneira Deus faz violência às pessoas?

Como comentou Levinas, o outro é o desafio da liberdade, a provocação que a desperta. Diante do outro há duas atitudes: examiná-lo para ver em que ele me poderia ser útil ou qual é a ameaça que representa para mim, ou, então, perguntar-me o que eu poderia fazer para ajudá-lo. A liberdade de Deus autolimita-se. Diante da sua criatura, Deus limita a sua presença. Deus preferiu antes deixar que crucificassem o seu Filho a intervir para impedir tal injustiça. Trata-se de fraqueza voluntária.

É verdade que durante muitos séculos, sobretudo na pregação popular, os pregadores apresentaram uma concepção bem diferente de Deus. Usaram temas e comportamentos da religião popular tradicional: medo diante do trovão, medo da seca e de cataclismos naturais — entendidos como castigos divinos —, medo das doenças recebidas também como castigos e assim por diante. Era fácil despertar o temor a partir de ideias puramente pagãs ou supersticiosas. Essa pregação de terrorismo religioso podia dar resultados imediatos, levando milhares de pessoas aos sacramentos. A longo prazo, porém, destruíam as bases da credibilidade da Igreja. Hoje, a maioria das pessoas deixaram de ter medo do trovão, não sendo mais motivo para temer a Deus, como foi no passado. Naquele tempo achou-se válido o método do temor, todavia hoje recolhe-se os frutos dessa pastoral.

Pensou-se que os povos precisassem temer um Deus forte — e desprezariam um Deus fraco. Tais erros se pagam cedo ou tarde. Estamos pagando hoje esse preço.

Deus torna-se fraco porque ama. Quem mais ama é sempre mais fraco. Não será essa a grande característica das mulheres? Quase sempre amam mais e, por isso, sofrem mais. Porém, nessa fraqueza consentida não estará a maior liberdade? Nessa fraqueza a pessoa vence todo o egoísmo, todo o desejo de prevalecer, toda a preguiça ao aceitar maiores desafios. Exige mais de si própria, vai mais longe, além das suas forças. “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15,13). Aí está também a expressão suprema da liberdade.

A fraqueza de Deus vai até a ponto de se tornar suplicante. O versículo predilecto do saudoso teólogo latino-americano Juan Luís Segundo diz: “Eis que estou batendo na porta: se alguém ouvir minha voz e abrir a porta, entrarei na sua casa e cearei com ele e ele comigo” (Ap 3,20). Deus bate na porta e aguarda. Se não é atendido, afasta-se e continua o caminho. Somente entra se é convidado. Depende do convite das pessoas. Deus torna-se pedinte, suplicante.

Autor: Padre José Comblin

Texto Proposto: Padre Tiago Pires

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