Caminhava devagar próximo da oliveira grande, à distância de lhe passar a mão no pêlo e meter conversa com a centenária criatura. O tronco tem as rugas da idade e a caverna dos anos, era nela que me escondia, tantas vezes, quando brincava na rua. Nesta ocasião apeteceu-me entrar nela; pela porta que os anos lhe talharam no pé, sentir a máquina do tempo. Na expectativa de desvendar o imaginário, perguntei à resistente amiga: posso entrar?
Foi um acolhimento maternal de quem se lembrava do filho traquina. Lentamente senti o aperto do tronco que se fechava e me absorvia na sua natureza, de tal modo que os pés se esticavam com as raízes, os braços eram ramos, o sangue seiva, os olhos azeitonas, transpirava azeite, o cabelo folhas, e a boca uma toca para nidificar. Assimilei a memória da oliveira, os seus sentimentos e o eu duplicou. Ela sabia o meu nome, o som que ouvia quando me chamavam de Mérco, mas já ninguém dos que carinhosamente assim me apelidavam me chama, entraram noutra dimensão.
Hoje estenderam-me uns panos debaixo, como fazem todos os anos no Outono, deram-me tareia com varas, arrancaram-me os cabelos, cortaram-me dedos e fiquei maltratado, mesmo violentado. Pobres criaturas, hão-de passar por mim deitadas como os pais dos pais dos pais… Já lhes untei o talo da couve (clister primitivo), enchi a candeia, fui mezinha na barriga, temperei a sopa, besuntei a torrada e lubrifiquei o eixo da carreta que os levou para Alcanede. Eu fico aqui de pé neste lugar, à espera de outra geração que tenha tempo para brincar, trepar por mim acima, saltar, pendurar um baloiço, fazer um apito com as minhas folhas, e, mais crescidos, sentarem-se no banquinho da minha raiz a namorar: gostas de mim? eu gosto de ti. Vamos ver qual gosta mais, rasgamos esta folha de duas pontas, o que ficar com o pé é o que gosta mais.
