O grande incêndio do passado dia 20.07.2019, em Vila de Rei e Mação, suscitou-me uma enorme curiosidade de análise das causas da sua extensão, o que me levou à seguinte questão: E se fosse na freguesia de Alcanede?
A freguesia de Alcanede possui uma área de 10 609,63 hectares (CAOP-2018), onde 67,2% é espaço florestal (eucaliptal 34%, pinhais 6%, outras folhosas 5,2%, matos 21% e 1% matos rasteiros), 24,6% é espaço agrícola e 8,2 % são territórios artificializados (3,5% é espaço edificado e 4,7% é industria extrativa).
O mapa que elaborei corresponde à da carga de combustível para freguesia de Alcanede, referente ao ano de 2015, onde os diferentes tipos de carga combustível são diferenciáveis por cores. Os encarnados representam áreas arborizadas com espécies florestais de maior combustibilidade ao fogo, como o pinhal e o eucaliptal (encarnado de tonalidade mais escura); o laranja representa os matagais, onde se incluiu a azinheira em porte arbustivo, designada localmente por carrasco branco; a verde as espécies florestais com menor combustibilidade, o sobreiro, o carvalho e as espécies caducifólias, como choupos, freixos e salgueiros; o verde-claro as áreas de matos rasteiros, pastagens naturais e substratos rochosos; o amarelo os espaços agrícolas; o cinzento as áreas artificializadas de infraestruturas e equipamentos e povoações; o cinzento claro as áreas de pedreiras e à azul a rede principal hidrográfica hierarquizada.
Ressalva-se que o mapa evidencia a carga de combustível e o seu maior ou menor grau de combustibilidade em termos espaciais e em função do tipo de vegetação. Não se conclua daqui que se trata de um mapa de risco de perigosidade de incêndio, que assume na sua elaboração outros critérios, ou que os carvalhos e sobreiros por terem maior resistência /resiliência ao fogo não ardam, ou outra coisa qualquer. O grau de severidade de um incêndio está diretamente relacionado com a carga de combustível no território mas, maior carga de combustível não significa maior risco de incêndio se a mesma for objeto de gestão florestal (limpeza, desbaste e recondução florestal, etc.). Como é do conhecimento geral, as ações de gestão florestal atenuam em muito a suscetibilidade ao fogo, no entanto, estas ações tendem a ter uma expressão espacial reduzida em áreas de minifúndio, como é o caso, porque os seus custos dificilmente são renumerados pelo valor final da exploração florestal. Portanto, os seus efeitos a esta escala e neste território, na minha opinião, serão residuais.
O resultado mais visível no mapa é uma clara evidência da concentração da carga de combustível no Sul da freguesia, comparativamente com o Norte da mesma, com claras deficiências ao nível do ordenamento/planeamento florestal, uma vez que se verificam falhas significativas ao nível das áreas de descontinuidade a Sul, por exemplo, junto às linhas de água, ocupadas por eucaliptal em vez de espécies florestais de menor combustibilidade, o que para além de elevar o risco de incêndios, pela continuidade de combustível, é uma contradição com as orientações emanadas pelo planeamento regional.
Quanto ao seu maior ou menor grau de combustibilidade em função do tipo de vegetação, temos combustibilidade baixa em 39,6 % do território da freguesia, média em 20,9% e alta em 40,1%.
Daqui se pode concluir que não estamos ao nível da situação do que se passou no concelho de Mação, nem de perto nem de longe mas, também não tenhamos ilusões, as evidências não revelam que não estejamos para lá a caminhar.
Como acima disse, o grande incêndio do passado dia 20.07.2019, em Vila de Rei e Mação, suscitou-me uma enorme curiosidade de análise das causas da sua extensão, atendendo que nesta última primavera desenvolvi ali algum trabalho de campo, com muitas centenas de quilómetros percorridos em vários períodos, e vi muito trabalho de prevenção realizado, nas faixas de proteção (faixas de gestão de combustível – FGC), designadamente, ao longo das vias, linhas elétricas e povoações.
No caso de Mação o trabalho de prevenção aos incêndios rurais tem vindo a ser realizado há largos anos, com o presidente (Vasco Estrela) e vice-presidente (António Louro) empenhado de corpo e alma na resolução deste problema, sendo mesmo considerado por muitos especialistas o concelho do país mais bem preparado para responder a esta problemática.
Fica pois a questão: porque razão ardeu 95% da área do concelho de Mação?
Para mim, a resposta é clara e inequívoca. Ardeu porque tinha muito, muito combustível.
O concelho de Mação tem ardido ciclicamente com grandes fogos: 1991, 2003 e 2017, e outros tantos de menor dimensão permeio. A partir dos incêndios de 2003 a Câmara Municipal encetou um processo revolucionário à escala do concelho, de prevenção e dotação de meios para auxílio ao combate, com grande envolvimento da população, que fez escola a nível nacional e internacional, onde se destaca, entre muitas coisas, a criação de Zonas de Intervenção Florestal (ZIF) como forma de dar resposta à problemática da falta de escala na gestão florestal das áreas em minifúndio. Processo que posteriormente foi enquadrado por um quadro legal para que fosse replicado a todo o país.
O concelho de Mação possui uma área de 39 998 hectares, maioritariamente florestal, onde 87% é espaço florestal, 11% espaço agrícola e 2% é espaço edificado.
Neste mapa que elaborei evidencia-se a evolução da carga de combustível entre 2010 e 2015 do concelho de Mação, onde os diferentes tipos de carga combustível são diferenciáveis por cores. Os encarnados representam áreas arborizadas com espécies florestais de maior combustibilidade ao fogo, como o pinhal e o eucaliptal (encarnado de tonalidade mais escura); o laranja representa os matagais, onde se incluiu o pinhal denso de pequeno porte designado pelos especialistas por “pelo de cão”; a verde as espécies florestais com menor combustibilidade, o sobreiro, o carvalho e as espécies caducifólias, como choupos, freixos e salgueiros; o verde-claro as áreas de matos rasteiros, pastagens naturais e substratos rochosos; o amarelo os espaços agrícolas; o cinzento as áreas artificializadas de infraestruturas e equipamentos e povoações. À azul a rede principal hidrográfica hierarquizada.
O resultado visível no mapa é uma clara evidência da enorme carga de combustível que se acumulou em cinco anos no concelho, traduzida pelo aumento da área de pinhal (crescimento do pinhal “pelo de cão”) de 17, 5% para 45,6% (+28,1%), eucaliptal de 15,5% para 23,6% (+8,1%), sendo a evolução dos matos de 12,7% para 16,1 % (+3,4%). As espécies florestais de menor combustibilidade têm um aumento de 0,5% para 0,8 %, sendo um valor muito residual, e os matos rasteiros reduziram em área de 5,3%, em 2010, para 0%, em 2015.
Portanto, se considerarmos o somatório das áreas de, baixa, média e alta combustibilidade, entre 2010 e 2015, as primeiras reduziram de 19,6% para 13,6 % (-6,0%), as segundas reduziram 47,7% para 16,1% (-31,6%) e as terceiras aumentaram de 33,0% para 69,2% (+36,2 %).
Ou seja, para mim, a razão porque ardeu o concelho de Mação tem na sua base um forte aumento da carga de combustível que não foi acompanhada por adequadas medidas de ordenamento e gestão florestal, que impedissem ou diminuíssem as possibilidades da progressão das frentes de incêndio, como sejam, a redução das áreas de combustível em áreas estratégicas, planeamento e gestão dos povoamentos florestais, não só em termos de carga de combustível como pela opção das espécies florestais mais resilientes e adequados meios de combate, face à carga de combustível existente.
Um território com 69,2% de elevada carga de combustível, sem essa gestão, são como barris de pólvora abandonados no território que a todo o momento podem rebentar. E foi o que aconteceu.
Volvidos 16 anos depois do grande incêndio de 2003, 95% da área do concelho de Mação foi consumida por incêndios, 80% em 2017 e 15% em 2019, deitando por terra toda a estrutura deste “edifício” que foi montada e melhorada, ano após ano. E se duvidas houvessem o incêndio de 2019 foi a machadada final. Os prejuízos foram de milhões de euros, mas fica por apurar um prejuízo imaterial não desprezível: a falta de ânimo para se reerguerem as populações e as instituições. É porque com este ciclo de incêndios deixa-se de acreditar. Ou por outra, começa-se a acreditar que a fatalidade é uma certeza, pelo não adianta encetar o processo de mudança e de reconstrução.
Que fique claro, que não estou a pôr em causa nem a avaliar o trabalho desenvolvido pela Proteção Civil ou pelo município de Mação no combate a este incêndio, até porque não possuo conhecimentos para isso, mas simplesmente refiro-me à evidência das evidências que com estes resultados, ano após ano, se verifica que a estratégia levada a cabo, no país e em muitos municípios, não é suficiente ou está mesmo errada para combater este tipo de incêndios. Os últimos grandes incêndios de 2016, 2017, 2018 e agora 2019, têm-nos demonstrado que o sistema de combate colapsa com incêndios de grande dimensão, cuja energia gerada está muito acima das medidas preventivas existentes no terreno e da capacidade dos meios de combate, por mais meios que se disponibilizem. Até porque, a determinado ponto, o envio de mais meios para as operações de combate constitui uma sobrecarga, que gera ineficiências e descoordenação, pela complexificação da logística e gestão dos mesmos.
O fogo nasce de uma ignição que se expande na presença de três elementos cruciais: oxigénio, calor (temperatura) e combustível. Estes três elementos constituem a “trilogia do fogo”, pois basta que um não esteja presente para que não exista fogo. Ora, como sabemos o oxigénio está presente na atmosfera, pelo que é uma variável fora do controlo humano. Já as outras duas o não são. O calor combate-se pelo seu arrefecimento e o combustível pela sua eliminação. Quanto ao controlo do fogo pela supressão total das ignições, no caso dos incêndios rurais, é uma utopia e uma veleidade de uns quantos iluminados. Haverá sempre ignições que escapam ao controlo, até porque as estatísticas dizem-nos que somos os recordistas a nível mundial.
Durante décadas as políticas de combate ao flagelo dos incêndios rurais têm sido focadas no controle da variável “calor”, usando a água como arrefecimento e uma panóplia de meios de transporte e recursos humanos para a fazer chegar às frentes de incêndio. Ora, como acima expliquei, essa estratégica revela-se insuficiente para a energia gerada por este tipo de incêndios e se dúvidas houvesse basta vermos as imagens de destruição da sua passagem, onde o vidro e o alumínio são derretidos com temperaturas da ordem de 1000o C, sabendo nós que a água com que combatemos o incêndio se evapora a 100o C. Está tudo dito.
As políticas de combate ao flagelo dos incêndios rurais descuram, durante décadas, a variável “combustível”, assumindo esta na atualidade maior significado, à medida que o despovoamento e o abandono do “mundo rural” se intensificam. As terras que antes eram amanhadas por gente e pastoreadas por gado estão hoje ao abandono a criarem matos e arvoredo sem qualquer gestão. Ou seja, quer isto dizer que quanto maior for o abandono rural maior será a carga de combustível que iremos ter no território. E com os fenómenos extremos das alterações climáticas mais tudo se complica.
Por isso, concluo que no centro da equação do fogo é essencial que nos focamos na variável “combustível” (diga-se redução da carga de combustível à escala da paisagem), porque tudo o resto o tempo tem-nos demonstrado que é simplesmente acessório.
É, para mim, esta a grande lição a retirar dos incêndios do concelho de Mação.
Luís Ferreira
(Licenciado em Gestão do Território)