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Sexta-feira ,19 Abril, 2024
Artigos de Opinião

A morte e a vida

A morte surpreende-nos sempre. Surpreende-nos pelo inesperado, porque irrompe totalmente fora do nosso controlo. Muito mais ainda quando, pelos nossos cálculos, aparece cedo demais, na força da idade, como dizemos. E surpreende-nos pelo que traz: o vazio súbito, feito da ausência irremediável do que dávamos por adquirido. Agora desaparece aquilo que implicitamente considerávamos garantido, ao ponto de nem nos ocorrer sequer que pudesse ser de outra maneira.

Se a surpresa nasce do vazio da ausência, então a morte é uma revelação. Faz-nos acordar para o valor da vida que antes fruíamos duma maneira se calhar demasiado trivial, sem repararmos no extraordinário dom que ela era. Revela-nos a fragilidade da existência, criada em cada momento e tão à mercê de poder já não durar no momento seguinte. Acordados pela morte, caímos bem na conta que, afinal, a grande surpresa, a de todos os dias, é a vida que vem ao nosso encontro e nos desafia, nos chama, nos convida. A surpresa da morte é só a conclusão, o término, das surpresas permanentes trazidas pela vida.

A melhor forma de não se ser surpreendido pela morte é deixar-se permanentemente surpreender pela vida. A morte pode-nos surpreender, mas a vida deve sempre surpreender-nos ainda mais. O modo como se vive a aproximação da morte mostra bem como se viveu a vida. Se esta foi sempre acolhida com o espanto de quem não se pode apropriar dela, então a morte não traz surpresa nenhuma. É apenas o fim de uma jornada, um último abandono, forma definitiva da entrega que distingue o estilo de viver de quem está sempre a ser surpreendido pela vida.

Viver a vida como surpresa é deixar-se encantar por ela, como se fosse em cada uma das vezes a novidade absoluta que sempre é. É não se acomodar nos confortos, nem se sentir dono de nada, mas responder às circunstâncias com paixão, sentindo a urgência do instante precioso que não se repete e o dever de não deixar por fazer aquilo que pode ser feito. É explorar cada fragmento dela com a excitação do assombro, sentindo o apelo dos horizontes e a curiosidade das profundezas, viajando no mundo exterior também, mas, sobretudo, interiormente, à descoberta do melhor que o espírito humano pode desvelar. É não virar a cara à luta, ser frontal na defesa do essencial e ter muito clara uma hierarquia de valores que deve reger todas as decisões, mesmo quando, depois, se tem de pagar o preço da coerência. É viver em peregrinação, sem se deixar prender por nada, mas não deixando de apreciar e saborear tudo o que a vida oferece. Viver a vida como surpresa é acreditar e construir esperança.

O sentido de gratidão torna-se marca identificadora. Gratidão por todo o vivido, o agradável e o duro, o sucesso e o fracasso. E da gratidão flui a responsabilidade do serviço, o dever de dar, de pôr talentos a render, de fazer o dom acolhido frutificar, a favor duma vida melhor para os outros. E flui a liberdade face aos interesses individualistas, abrindo espaço para o exercício responsável da cidadania, o serviço público, a prioridade ao bem comum. A vida vivida como surpresa é uma vida vivida como missão.

Uma vida vivida assim não se mede pela quantidade da sua duração, mas pela qualidade das acções que a teceram – tão bem espelhada no brilho do rasto que imediatamente deixa. Morrer cedo importa menos quando se viveu com intensidade e profundidade. Em homenagem sentida a Maria José Nogueira Pinto. Com gratidão pelo testemunho.

Autor: Padre Herminio Rico
Texto Proposto: Padre Tiago Pires

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