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Sexta-feira ,19 Abril, 2024
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João Melo Ataíde: “Toda a região foi integralmente pilhada e devastada”

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jmeloO livro “A Lamentável Invasão” de João Melo Ataíde vai ser apresentado publicamente no próximo dia 18 de Setembro pelas 18 horas, durante a Expo – Alcanede. O Portal de Alcanede esteve à conversa com o autor que revelou alguns pormenores do conteúdo deste estudo. Alcanede foi um ponto-chave da linha que dividia os dois exércitos e a maior parte dos acontecimentos que aqui se desenrolaram.

A vila foi ocupada pelas tropas do 8º Corpo francês, durante cerca de quatro meses. De acordo com o autor, foi possível reconstituir a evolução da ocupação durante este período e conhecer a estratégia francesa de defesa da vila, em caso de ataque luso-britânico. Um episódio interessante prende-se com o facto de Junot se ter retirado para Alcanede, após ter sido ferido no combate de Rio Maior.

invasoesfrancesas1PA – Quais foram os motivos que o levaram a escrever o livro?

João Melo Ataíde – O que motivou a elaboração deste trabalho foi o interesse em aprofundar a história deste período na nossa região. Em 2005, na Nova Monografia de Alcanede já tínhamos abordado o tema das invasões francesas. Posteriormente pude verificar que havia um enorme manancial de informação sobre a nossa região neste período, disperso por livros de memórias de estrangeiros que tinham participado na 3ª invasão de Portugal.
Por outro lado, como se perfazem dois séculos sobre a 3ª invasão francesa, propus a publicação do estudo ao Presidente da Junta de Freguesia de Alcanede, que aderiu à ideia. O lançamento do livro, na 5ª Expo Alcanede, dai 18 de Setembro, irá assim assinalar oficialmente o 2º centenário da invasões francesas na nossa região, o que não deixa de ser uma iniciativa de relevo, ao nível do distrito de Santarém.

PA – Presumo que isto é sempre um trabalho gigantesco sobretudo ao nível de pesquisa?

JMA – Este estudo teve por base uma pesquisa diversificada de fontes impressas sobre as invasões francesas. O livro que iremos lançar inclui uma adenda sobre a bibliografia consultada, que permite ter uma ideia da variedade das fontes. Por outro lado, boa parte delas são em língua inglesa ou francesa, o que implicou um trabalho adicional de tradução. De resto, não sou um investigador e desenvolvi este estudo, como curioso da história regional, no meu tempo livre. O estudo privilegia testemunhos escritos por protagonistas estrangeiros da Guerra Peninsular. Há ainda a realçar o manancial de informação contido nos despachos de Lord Wellington, bem como a monumental “História da Guerra Civil”, de Luz Soriano, uma obra de referência sobre este período, embora de menor utilidade prática para o estudo da história regional.

PA – Quando escolhe um título forte como “ A Lamentável Invasão”, decerto é intenção sublinhar os momentos dramáticos que a região viveu com as invasões francesas, o que é que isso significou em termos globais para a região de Alcanede?

JMA – O título foi inspirado em Luz Soriano, que usa outras adjectivações como “detestável”, etc. As tropas francesas (o chamado exército de Portugal) ocuparam a região entre Novembro de 1810 e Março de 1811. Os efeitos da sua presença foram absolutamente devastadores, estendendo-se a toda a área a norte do Tejo, digamos até Leiria e Tomar. Alguns relatos são impressionantes quanto à crueza e desumanidade da guerra. Actualmente não temos uma noção nítida da calamidade que foram as invasões francesas, em termos humanos e materiais.

PA – É possível situar com alguma exactidão os locais da região de Alcanede mais afectados por estas invasões?

JMA – Toda a região foi integralmente pilhada e devastada. Embora centrada em Alcanede, ocupada por uma significativa força do exército francês, o livro contém informação curiosíssima relativamente a outras terras, por exemplo, Rio Maior, Pernes e, claro, Santarém. Há ainda referências variadas a outras localidades da nossa região, nomeadamente Tremês, Fráguas, Abra, Mosteiros, Alqueidão e Aldeia da Ribeira, todas elas cenário de episódios de guerra.

invasoesfrancesas2PA – Além das consequências materiais e sociais, concorda que o período das invasões francesas deixaram marcas profundas na sociedade Portuguesa também sob a perspectiva politica?

JMA – Absolutamente. No fundo as invasões francesas foram o primeiro passo para o fim do chamado Antigo Regime e instauração do liberalismo em Portugal. No início do século XIX, em escassas décadas, ocorreram as maiores transformações da história e da sociedade portuguesas.

PA – À luz da história acha que os poderes de então em Portugal deveriam ter tido a obrigação de estar mais atentos dos perigos que ameaçavam o País?

JMA – Não podemos esquecer que a Guerra Peninsular foi um embate entre a França e a Inglaterra. No contexto da política europeia Portugal tinha um papel acessório no rumo dos acontecimentos. D João VI tem sido alvo de muitas criticas na condução do processo, mas, na perspectiva da soberania, haverá algum rasgo na transferência do aparelho do Estado português para o outro lado do Atlântico. Em Espanha, por exemplo, os Bourbons foram depostos, aprisionados e levados para França. Com consequências igualmente dramáticas, não terá sido uma saída brilhante.

PA – Quem investiga um pouco daquilo que foram as invasões francesas não pode deixar de notar, que o povo teve um papel decisivo na resistência aos invasores mais do que as pequenas forças militares. Acredita que logo no início da 1ª invasão se houvesse ordens explícitas a resistência poderia ter ditado, uma história diferente?

JMA – A residência popular foi determinante para o desgaste do exército francês, em particular na terceira invasão francesa e em toda a Estremadura e Beiras. Mas não deve menosprezar-se as capacidades de Lord Wellington, no comando das forças luso-britânicas, pese embora o elevado custo suportado pelas populações. Wellington impôs uma política de terra queimada, obrigando as populações da Beira e Estremadura a recolherem-se dentro das Linhas de Torres e a destruírem os seus bens, antes da chegada dos franceses. De resto, para a derrota francesa concorreu um conjunto de factores; a estratégia de Massena de estacionar na nossa região, durante o Inverno, aguardando instruções de Napoleão, revelou-se um erro fatal.

PA – Pelo que se percebe dos acontecimentos da época Portugal estava numa posição difícil entre duas grandes super potências por um lado os interesses da Grã-Bretanha por outro a França. Até a questão de uma eventual neutralidade de Portugal não dava garantias de que a guerra podia ter sido evitada?

JMA – Como referi, Portugal tinha um peso menor no conflito, sendo difícil escapar às estratégias definidas em Paris e Londres. Creio que evitar a invasão estava para lá das suas reais capacidades. A diplomacia portuguesa terá feito o que estava ao seu alcance, o que, segundo alguns, também reflecte a indefinição nacional sobre a estratégia a seguir.

PA – Voltando ao livro “ A Lamentável Invasão”. As pesquisas que efectuou dos relatos de militares estrangeiros trouxeram alguns dados que de todo não estava à espera?

JMA – Desconhecia que Alcanede fora um ponto-chave da linha que dividia os dois exércitos e a maior parte dos acontecimentos que aqui se desenrolaram. A vila foi ocupada pelas tropas do 8º Corpo francês, durante cerca de quatro meses. Foi possível reconstituir a evolução da ocupação durante este período e conhecer a estratégia francesa de defesa da vila, em caso de ataque luso-britânico. Um episódio interessante prende-se com o facto de Junot se ter retirado para Alcanede, após ter sido ferido no combate de Rio Maior. É também impressiva a breve narração de um soldado inglês sobre o estado em que encontrou Alcanede, após a fuga dos franceses.

invasões francesasPA – Pode concretizar ou enquadrar algum episódio?

JMA – Para além do que já mencionei, destacaria a descrição particularmente viva da estadia de Francis Hall em Alcanede em 1812, já na fase da reconstrução. Este inglês, hóspede do prior de Alcanede, faz uma descrição do estado em que encontrou a vila e narra as suas conversas com o clérigo, incluindo a forma como este se gabava de ter amedrontado os franceses. É um trecho muito interessante para a história das mentalidades.

PA – O acervo documental que pesquisou deixa margem para outras reflexões sobre aquele período histórico?

JMA – Há sempre espaço para reflexão e a pesquisa histórica é sempre imponderável.

PA – Que diferenças substanciais encontrou entre aquilo que são os relatos dos militares estrangeiros e os relatos de quem viveu as invasões na defesa de Portugal?

JMA – Os relatos de portugueses sobre as invasões são escassos. No âmbito a que me reporto, ressalvo as memórias de José Liberato Freire de Carvalho. Em contrapartida, há uma vasta literatura francesa e anglo-saxónica, escrita na primeira pessoa. Diria que, mais que as diferenças, são as semelhanças que os aproximam. A generalidade dos autores, independentemente da nacionalidade e facção, reconhecem e condenam os excessos perpetrados na Guerra Peninsular, por ambas as partes, incluindo as crueldades das populações contra soldados franceses.

PA – Obrigado e felicidades…

JMA – Agradeço a oportunidade.. bem haja

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